Antes de qualquer coisa, é bem verdade que, para fruir algo vindo da alma é preciso ter corpo. Dessa relação, a gente não escapa. Comer é uma necessidade, um dos
instintos mais básicos da humanidade. Sentimos fome. E somos motivados a aplacá-la de uma forma ou de outra para podermos permanecer vivos. Sem comida, a gente
nem sequer viveria – pelo menos não nesse modelo de vida que temos hoje, da vida em sociedade, em que temos de acordar, trabalhar, cuidar dos filhos. Mais que matar a fome, no entanto, a alimentação foi um movimento fundamental na construção da nossa sociabilidade.
Foi ao redor da mesa (ou da fogueira, se voltarmos ao princípio dos tempos) que nos constituímos seres humanos e seres sociais, capazes de sentar, interagir e celebrar
com nossos semelhantes. “A gente se distrai e nem repara que comer é uma das coisas mais importantes da vida. São tantos dias sem café da manhã, com almoço corrido, jantar em frente à TV, que vamos engolindo a sobrevivência sem nem perceber”, lamenta a banqueteira e colunista de gastronomia Nina Horta. A verdade é
que mal paramos para pensar na representatividade que uma simples refeição pode ter em nossa vida.
Em volta do fogo
O antropólogo Richard Wrangham passou anos reunindo referências e comportamentos dos nossos ancestrais para concluir que a necessidade de nutrir o corpo teve papel importante para nos ajudar a tecer nossos laços sociais. Ele defende a tese curiosa (e polêmica, para alguns autores) de que o que diferenciou o Homo sapiens dos outros primatas foi que, para nos tornarmos homens, primeiro tivemos que começar a cozinhar. “Ele [o cozimento] mudou nosso corpo, nosso cérebro, nosso uso do tempo e, claro, nossa vida social”, afirma no livro Pegando Fogo – Por Que Cozinhar Nos Tornou Humanos (ed. Zahar). Para Wrangham, a mais importante descoberta da nossa humanidade foi, sem dúvida nenhuma, a do fogo. Além das vantagens claras de abrigo e de proteção, ele mudou a forma de nos relacionarmos com o que comemos, como comemos e, principalmente, com quem comemos. “Foi pelo fogo que o homem domou a própria natureza”, conforme escreveu o célebre gastrônomo francês Jean-Anthelme Brillat-Savarin, ainda no século XIX.
O cozimento, como o elo que define a essência humana, provou que os humanos estavam adaptados ao consumo de alimentos cozidos da mesma maneira essencial como vacas estão acostumadas a comer capim, ou qualquer outro animal está adaptado a sua dieta característica. “Estamos adaptados ao regime de alimentos cozidos, e os resultados impregnam nossa vida, do nosso corpo à nossa mente”, ressalta o antropólogo. Foi a partir do cozimento dos alimentos que a carne, antes difícil
de mastigar e deglutir (imagine morder um pedaço de carne de vaca crua), se tornou mais apetitosa – tanto em sabor quanto em propriedades nutritivas. Isso fez com que a caça ganhasse maior importância e, como essa era uma atividade masculina, as mulheres desenvolveram assim o papel de cozinhar. Durante o Neolítico (a chamada Idade dos Metais), os homens deixaram de lado a dieta exclusivamente à base de sementes e raízes e a captura de pequenos animais, e passaram a caçar os animais de grande porte. Como demandava planejamento e ação coletiva, os homens acabaram fortalecendo os laços de companheirismo do grupo. Quando voltavam da caça com a conquista de uma presa, se reuniam com as mulheres em torno do fogo, para comemorar o feito e se deliciar em lauta refeição. “Na primeira manifestação de sociabilidade da história, as pessoas dividiam mais que comida, desenvolviam o convívio. Foi daí, aliás, que surgiu o termo ‘conviver’, de cum vivere, que significa comer junto, dividir o pão. Uma imagem que vai permear nossa noção de cultura ao longo dos séculos”, explica Sandro Dias, professor de história da gastronomia
do Centro Universitário Senac de Águas de São Pedro (SP).
Um por todos, todos por um
Mesmo que a princípio seja um ato para aplacar uma necessidade individual, comer se tornou uma atividade essencialmente coletiva para nós. Antes comíamos mais como os chimpanzés, cada um por si. Depois do advento do cozimento, passamos não só a partilhar o trabalho (homens na caça, mulheres a cozinhar) como também a nos reunir em volta da fogueira ou da mesa – passou a valer a política do “um por todos, todos por um”. “Cozinhar acaba com a autossuficiência individual”, afirma a arqueóloga Catherine Perlès. Porque tem muito mais valor se alimentar quando, além da mesa farta, todas as cadeiras estão devidamente ocupadas, não é mesmo? Fizemos de uma necessidade biológica (a fome) uma necessidade afetiva e social, que é se reunir, confraternizar e estar perto das pessoas por meio do alimento.
“Já que é preciso comer, vamos comer para valer, e botar a galinha no molho pardo, e fritar a batata, e pescar e salgar o bacalhau, e tirar as frutas maduras do pé,
e fazer geleia, e descascar amendoim, e fazer bolo de fubá e chamar todo mundo para compartilhar aquilo que preparamos”, defende Nina Horta.
A prova de que a comida ganhou uma representatividade social tão onipresente é que todas as celebrações humanas (talvez os momentos que mais valorizamos na vida) estão pautadas pelas refeições – ou, pelo menos, diretamente ligadas a elas. Basta chegar qualquer ocasião especial, como um aniversário, um batizado, o Natal, um
casamento, para pensarmos em organizar um almoço, jantar, lanche ou ceia. Tudo é sempre uma razão para nos reunirmos em volta do alimento. “Comer é das coisas mais bonitas que fazemos em conjunto”, destaca Nina Horta. A questão é que só dividimos a mesa entre iguais, do ponto de vista cultural, social, religioso e, muitas vezes, até mesmo em relação ao ponto de vista econômico. “Por isso todos os rituais representativos da nossa cultura (ou pelo menos da cultura judaico-cristã-ocidental), como o casamento e o Natal, entre outros, são exemplarmente celebrados com base numa espécie de banquete no qual todos reafirmam sua identidade social”, completa o professor Sandro Dias.
A mais simples refeição
Isso igualmente ocorre no âmbito particular das nossas casas, onde o cozimento também ajudou a moldar nossas relações familiares. O ato de cozinhar criou horários determinados para as refeições e, com isso, organizou as pessoas em comunidade. Toda a nossa rotina foi determinada pelos horários em que nos alimentamos – da escola das crianças até nossa jornada diária de trabalho. Isso para que, de uma forma ou de outra, todas as pessoas da casa pudessem estar reunidas. “Isso tem a ver com o conceito primitivo do fogo de unir ao seu redor (ou, no caso de hoje, dos alimentos preparados graças a ele) todos os integrantes de um laço familiar, sendo, de modo figurativo, um manto que aquece, aproxima e protege todos os seus integrantes”, afirma o historiador de alimentos Felipe Fernández-Armesto.
O chef argentino Francis Mallmann tem no fogo as principais recordações afetivas de família. “Quando fecho os olhos e rememoro aqueles tempos, posso escutar a conversa dos meus pais durante o café da manhã anunciando a chegada de um caminhão de lenha”, relembra ele nas páginas do livro Sete Fogos (ed. Vergara & Riba). “Todas as manhãs, cortávamos um pouco de lenha pequena para acender os três fogos que proporcionavam aquecimento, esquentavam nossa água e alimentavam o enorme fogão”. Mallmann resgatou suas origens ancestrais, tendo o fogo como elemento principal, para constituir sua culinária. Tornou-se um especialista em técnicas de cozimento a partir das labaredas. “Sinto-me atraído pelo fogo e pelo aroma de comida cozinhando nele”, diz. E vê em um modesto churrasco a celebração da nossa relação com a comida: em volta do fogo, sem qualquer cerimônia, a não ser de estar ao lado de pessoas de quem gostamos. “Na hora de sentar para comer, não importa como as pessoas se vestem nem como falam, nem sequer como cheiram. Todas são bonitas quando compartilham uma simples qualidade: o respeito pela comida, pelo momento; e respeito mútuo por quem cozinha e quem come.” Realmente, isso é muito mais que apenas se alimentar.