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Entre flores, vinhos e histórias de família

Published 26/02/2016

Entre flores, vinhos e histórias de família - Acervo pessoal

Dizem que crianças muito pequenas não guardam lembranças. Uma viagem feita nos tempos mais tenros da vida caria, quiçá, no inconsciente. Mas também dizem que existe aquela memória recriada por fotos e depoimentos de algum acontecimento de quando se era pequeno. De tanto escutarmos aquela mesma história e vermos as imagens de um certo momento acreditamos lembrar dele. Seja como for, Clara e Guilherme recordarão de sua viagem à Itália. Para eles, o reino encantado dos castelos, igrejas, vielas medievais, do sorvete e do macarrão. Foi em Roma que Clara, então com um ano e onze meses, provou pela primeira vez na vida um sorvete.
A estreia foi logo na Gelateria la Romana que nos indicaram como sendo a melhor da cidade – ah, os italianos e sua cultura superlativa! Em Florença, ela aprendeu a amar macarrão. Guilherme, com um ano e quatro meses na época, descobriu o risoto. Era uma pratada inteira a cada vez. Mas não só para os pequenos – para quem a vida em si é uma sucessão de revelações – essa viagem irá marcar história. Éramos nove adultos, além dos dois bebês. Todos ligados por laços familiares, ou “farinha
do mesmo saco”, como se diria em Minas, onde cada um de nós nasceu. Meu pai, minha mãe, meu irmão, minha cunhada, o sobrinho, o marido, a filha, o enteado e um casal de tios. Alguns iam pela primeira vez à Europa. Experiência já inesquecível. Gabriel, meu enteado de 17 anos, sequer havia saído do país. Imagino que se sentia como as crianças, com um universo inteiro a desbravar.
Nossa viagem à Toscana, no quente e seco junho de 2015, começou como uma celebração. Minha mãe faria 60 anos naquele dia 29 e queria comemorar com a família fazendo uma das coisas que mais gosta na vida: viajar. Foi a primeira aventura em família para festejar um aniversário. Sabíamos que não seria fácil conciliar as vontades de tanta gente. O desejo inicial de minha mãe, Catarina, era passar a data em Paris. Em paralelo, havia uma ideia já um tanto falada por meu pai, Francisco, de percorrer algum rincão do interior da Itália. Quem tem filho pequeno achava as capitais pouco convidativas. Estávamos mais para o clima bucólico gastronômico para que tanto a Itália nos convida. E, a nal, se já pensávamos que essa viagem seria um caos, uma bagunça, que haveria discussões acaloradas sobre onde comer, o que visitar, que horas sair etc., parecia não haver país mais apropriado do que a Itália. Ecco! Passados os debates iniciais ficou decidido nosso destino. Toscana.
Sob o sol da Toscana
A paisagem nos recebeu conforme a promessa: colinas gramadas em degradês de verde a marrom, quilômetros de lavanda, sálvia e alecrim na beira da estrada, campos
de fenos, topos de montanha com castelos medievais e cidadezinhas que se viam ao longe, onde os olhos quase não alcançam. Após três dias em Roma – onde
fizemos programas clássicos de turistas – alugamos três carros e fizemos o trajeto até o Vale D’ Orcia, uma das regiões ainda mais intactas da Toscana. Nesse pedacinho
de sossego localizam-se cidadelas medievais como San Quirico, Pienza, Montalcino e Bagno Vignoni, uma estância termal.
O vale cortado pelo rio Orcia é considerado Patrimônio Mundial da Humanidade pela Unesco desde 2004. O título se deve especialmente ao fato de a área ser uma manifestação artística do Renascimento (séculos 14 e 15) por meio da paisagem. Ali, a natureza foi trabalhada pelo homem como uma pintura. As colinas foram
pinceladas por gramíneas e ciprestes harmonicamente calculados, tornando o vale um exemplar excepcional de como a paisagem natural foi redesenhada no nobre período. Até poucas décadas atrás, a área era praticamente toda ocupada por antigas casas de fazenda, a maioria de pedras, quase abandonadas. Enquanto cidades
toscanas como Siena e Cortona já haviam se tornado rotas turísticas – esta última bastante famosa após ter sido cenário do filme Sob o Sol da Toscana (2003) – os primeiros desbravadores do Vale D’Orcia começavam a usar a região como um lugar para descanso e apreço de bons vinhos, restaurando suas antigas fazendas e “bordando” seus belos jardins.
Foi assim com a casa dos sonhos em que nos hospedamos por uma semana – reservada por meio do site de aluguel por temporada airbnb.com, como a maioria dos locais onde ficamos. O pai de Michele, um de nossos anfitriões, comprou a propriedade nos anos 1980. Tratava-se da casa principal de um antigo “borgo”, ou burgos, pequenos centros habitados fora das cidades muradas. Ali, as vilas eram sustentadas pela atividade agrícola. O casarão tinha três andares de 300 metros quadrados cada.
Até a época da compra, no térreo ainda cavam guardados os animais da propriedade. O primeiro piso era a morada dos donos e o segundo, um sótão. Michele, arquiteto, converteu cada andar em um espaçoso apartamento com quatro quartos, duas salas, cozinha equipada e uma decoração cuidadosamente Toscana, com móveis rústicos em sintonia com o piso de tijolos e as paredes de pedra. Demos sorte de conseguir o apartamento térreo, rodeado de portas-balcão que saíam para o jardim, um espetáculo à parte, com 9 mil metros quadrados de verde e ervas aromáticas. Não dava nem vontade de sair da casa. E no primeiro dia foi assim mesmo. Sem culpa.
Tomamos um demorado café da manhã na mesa do jardim, que emendou com um churrasco e só quase ao anoitecer (como o verão se aproximava, isso só acontecia lá pelas dez da noite) é que dirigimos os cinco quilômetros até a cidadezinha mais próxima, San Quirico. Lá jantamos e compramos ingredientes para cozinhar mais, claro, em casa.
 
Em torno da mesa
Ir ao mercado na Itália é um deleite para os sentidos. Tomates orgânicos vermelhinhos e macios, cerejas, pães crocantes, embutidos e queijos e mais queijos, além, claro, dos vinhos. Altíssima qualidade por bom preço. Assim, nossa mesa da cozinha, com cara de fazenda, estava sempre farta. Mal sobrava espaço para apoiarmos as esperadas xícaras de café pela manhã. Com o horário das crianças, não passava muito das oito e já estávamos de pé.
Cada um fazia seu desejum, curtía o jardim, a piscina e lá pela hora do almoço, saíamos para conhecer alguma das dúzias de cidadezinhas no entorno. A primeira e mais esperada parada era sempre um restaurante. E, assim, visitamos diversas paragens não só do Vale, mas de fora dele, como as conhecidas e pitorescas Montepulciano, Siena, Cortona, San Gimignano e a etrusca Volterra. Fazíamos bate-e-volta com trajetos que durassem até duas horas por trecho. Sempre almoçávamos juntos e depois passeávamos pelas ruas cheias de passado e presente. Esse era o momento de deixarse perder um dos outros. Afinal, o gostoso nas férias é cada um seguir seu ritmo e fazer seus micro roteiros próprios. Isso é muito importante para não tornar uma viagem em grupo uma agenda de obrigações e compromissos, ou, pior, de atividades
contra a vontade. Foi combinado desde o início que a vantagem de viajar em carros separados seria poder visitar lugares/cidades diferentes quando quiséssemos, assim
não ficaríamos naquela discussão diária de roteiro e tentando conseguir consenso em tudo. O que muito me surpreendeu é que acabávamos desejando fazer quase tudo em grupo. Não houve um dia sequer que, mesmo em três carros separados e podendo pegar a estrada para rumos distintos, tenhamos elegido diferentes cidades. O que houve vez ou outra foi alguém preferindo ficar em casa, degustando de um sossego, tirando uma soneca no imenso silêncio da antiga casa de pedras.
De volta à casa, sempre nos reuníamos em torno da mesa da cozinha ou da sala de jantar. Era o momento para compartilharmos nossas experiências durante o dia, o que descobrimos, o que gostamos, como foi engraçado algum momento. E de beber os néctares comprados pelo caminho. Era a hora de testar alguma receita, brincar que havia saído melhor do que a do restaurante ou de o tio João, com seu humor peculiar, zombar dos pratos típicos dizendo que em algum boteco de Minas ou do litoral do Rio de Janeiro, que ele frequenta bastante, havia comido algo melhor. Sabíamos que aquelas pequenas reuniões vespertinas ficariam guardados na memória e deixariam saudades. E não demorou para acontecer. Quando deixamos a casa e rumamos para Florença para nos hospedar em hotel, sem sala nem cozinha para o papo em comum, a tia Olga exclamou que o melhor da viagem já tinham sido as conversas no casarão todo m de noite.
Celebrávamos os pequenos detalhes, como o estouro de um prosecco, o primeiro beberico de um belo vinho ou algum charme feito por um dos bebês. Também festejamos outras datas importantes. Por exemplo: o aniversário de 38 anos do Helder, meu marido, foi em uma vinícola- castelo, o Castello di Gabbiano, em Chianti, ainda na Toscana. Viajamos em meio às parreiras até alcançar esse lugar escondido entre as montanhas. E lá provei o que até hoje atesto ter sido o melhor vinho
da minha vida (Castello di Gabbiano Bellezza Chianti Classico Riserva 2010). A comida também estava de lamber os dedos (nem o tio João se conteve, e elogiou).
Celebrar é preciso
 
Finalmente chegou o dia 29 de junho e teríamos o jantar que iniciou toda essa história. Nos hospedamos em um hotel em Florença e escolhemos no Guia Michelin (o mais estrelado no ramo da gastronomia em todo o mundo) um restaurante com um belo jardim para brindar os 60 anos de minha mãe: Relais Le Jardin. Foi uma
bela noite de verão, com os netinhos acordados até tarde e fotos clássicas para o álbum de família (hoje, mais nas redes sociais do que no papel em si).
De volta ao Brasil, foram semanas, para alguns até meses, de postagem de fotos. É verdade que uma viagem começa antes da data de embarque, no planejamento do roteiro. Mas eu acrescentaria que termina depois – se é que não se eterniza na memória – com os momentos revividos por meio dos casos e das fotos. Ao olhar para
as imagens, sentimos novamente aqueles sabores e cheiros, um fervilhar de sensações.
Em São Paulo, durante um bom tempo, Clara muitas vezes insistia que queria “ir para casa”. Chegava a ir para a porta, tentar abri-la para sair. Eu dizia: “mas lha, você está em casa”. Até que um dia, perguntei: “e onde é essa sua casa, quem mora lá?”. Ela respondeu que era a vovó, o vovô, a tia Ana, o Gabriel, tia Olguinha e o Gui. Sim, no casarão rural de Montalcino minha lha se sentiu amada e acolhida como em casa. Por ela, teria cado por lá mesmo, morando com a família inteira, comendo macarrão de grano duro com tomates frescos todos os dias. Correndo pelo jardim, claro. E depois há quem duvide que uma viagem marque a vida de uma criança
de menos de dois anos. Essa rota foi um belo capítulo em todas as nossas vidas. Não apenas pela maravilhosa comida e paisagem da Toscana – poderia ter sido em uma serra mineira ou em uma praia no Nordeste – ou pelo aniversário. Os quase 17 dias que ficamos fora nos marcou pelo tempo compartilhado, criando memórias. Essas ficam para a posteridade conforme viram histórias de família.
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