Criador e curador do ciclo de palestras Fronteiras do
Pensamento – que reúne grandes nomes do pensamento, das ciências e das artes –
e doutor em filosofia pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS),
Fernando Schüler vê com bons olhos a espiritualidade contemporânea. Para ele,
nunca antes as sociedades do mundo ocidental puderam viver a religiosidade de
forma tão branda, aberta e ecumênica – haja vista seu próprio posicionamento
como intelectual e luterano, combinação livre de conflitos, ele garante. “As
pessoas estão preocupadas em vivenciar um certo tipo de experiência
existencial, de alargar a sensibilidade”, afirma. Longe da severidade dos
dogmas, elas se voltam para o caráter utilitário da relação com suas crenças,
sejam elas quais forem. Buscam, seja pela via do autoconhecimento, da ioga, da
meditação, seja pela psicologia ou pela filosofia, caminhos para melhor viver.
Essa é a alma do nosso tempo. “Tal busca remonta ao epicurismo, que se
caracterizava pelo cultivo da filosofia como um guia para a vida”, compara.
Felizmente, o conhecimento acompanhado do debate de ideias está aí para nos
ajudar a desviar da armadilha de transformar essa busca em obsessão. A tal
felicidade obrigatória. Desfrute, a seguir, do que o intelectual pensa sobre
esse impulso tão antigo de transformar a existência numa longa e prazerosa
jornada.
Para você, o que é espiritualidade? Sou luterano.
Herança cultural e familiar fundada em um profundo respeito com o indivíduo e a
razoabilidade, com a qual me identifico. O luteranismo nasceu no início do
século 16, quando Lutero se opôs à autoridade da Igreja e do Estado, em nome da
liberdade de consciência e religião. Trata-se de uma religião sem hierarquias,
feita por comunidades, que aproxima as pessoas de uma relação íntima com Deus.
Em outras palavras, uma forma branda de espiritualidade, como é a marca da
religiosidade na cultura contemporânea.
Nos dias de hoje, a espiritualidade tem se inclinado em
qual direção? Migramos de uma cultura fundada na religião para uma época
pautada pela “espiritualidade”. Há uma história que dá sentido a essa
transição. Nosso mundo é marcado pelo que o escritor venezuelano Moisés Naim
chama de “revolução do mais”: o aumento da escolaridade, da oferta de informação,
o avanço da ciência. Tudo isso produziu um lento e silencioso processo de
laicização da cultura. E aqui me refiro aos países ocidentais. Isso não irá
eliminar a religião, mas alterar seu significado. As pessoas tendem,
progressivamente, a praticar formas mais amenas de religiosidade. Mais abertas,
tolerantes e ecumênicas. Não é por acaso que temos hoje um papa ecumênico, cuja
mensagem é menos doutrinária e mais espiritual.
Qual é a questão filosófica por trás desse novo
cenário? Para a maioria das pessoas, o que chamamos de espiritualidade guarda
muito do sentido originário da filosofia, que remonta à tradição epicurista –
escola filosófica do período helenístico que se perdeu durante o período
medieval e foi retomada na Renascença. O epicurismo se caracterizava pelo
cultivo da filosofia como orientação sobre a vida: a grande pergunta era como o
pensamento poderia nos ajudar a viver melhor.
E qual era a direção sugerida? Concebido pelo filósofo
grego Epicuro (341 a.C- 270 a.C), essa é uma filosofia da serenidade. Dos
prazeres calmos, da alegria suave que obtemos quando aprendemos a aceitar o
mundo e suas limitações, a superar a angústia provocada pela excitação estéril
do dia a dia, a vencer toda a sorte de medos que nos oprimem, a começar pelo
medo do fim, da morte, do “nunca mais”. No epicurismo, não há transcendência,
no sentido apontado pelas grandes religiões. Seu elemento espiritual vai na
direção contrária: a busca de si mesmo, da pacificação de nossa relação com a
vida e com os outros. Arriscaria dizer que, em algum sentido, vivemos uma época neoepicurista porque
vivemos nos preparando para uma vida cada vez mais longa. A moderação e o
cuidado de si assumem a condição de um valor pessoal. Buscamos viver em um
ponto de equilíbrio, e intuímos que a filosofia pode cumprir um papel nessa
procura.
O que alimenta a ânsia coletiva por viver melhor? Um
dos convidados do Fronteiras do Pensamento, este ano, é o filósofo francês
Pascal Bruckner, autor da obra A Euforia Perpétua. Ele identificou um dos males
de nossa cultura: a felicidade virou uma obrigação. Questiona se isso não
termina por ser uma fonte brutal de angústia e frustração. Num artigo recente,
o psicanalista Contardo Calligaris abordou essa questão. Ele diz que não vive
para ser feliz, mas para ter uma vida interessante, com suas dores e problemas.
A relação dos homens com a espiritualidade conserva uma
raiz imutável ao longo do tempo ou ela vai se moldando às influências de cada
época? O nascimento da modernidade marcou uma mutação significativa em nossa
cultura. Deus mor reu, no sentido de Nietzsche, filósofo
alemão (1844-1900), quando a história se moveu pela força do homem, na
Revolução Francesa. No século 19, com o naturalista britânico Charles Darwin
(18091882). Depois com Freud (18561939), com a grande tradição existencialista.
Deus morreu muitas vezes, mas curiosamente renasce a cada nova geração. Pois há
uma resposta que não é dada, e que possivelmente nunca o será: a resposta sobre
o sentido da vida. A filosofia pode nos ajudar a viver melhor, mas não responde
a essa pergunta. Logo, a religião continua a cumprir um papel, ainda que
“domesticado”, e não há por que não supor que isso continue assim por muito
tempo.
De quais maneiras certos convidados do Fronteiras do
Pensamento abordam a questão da espiritualidade? Um dos temas mais presentes –
e polêmicos – do Fronteiras é justamente o da religião. De um lado, há autores
de posicionamento historicamente cético, que destacam o aspecto do fanatismo e
da intolerância nas religiões. Por outro lado, tivemos autores que assumem
posição favorável a uma série de aspectos. São eles o filósofo britânico Terry
Eagleton, crítico dos intelectuais que acreditam que a fé cega as pessoas, e a
escritora britânica Karen Armstrong, fundadora da Charter for Compassion,
iniciativa internacional focada em promover a compreensão e a paz. Ela defende
a compaixão como um valor comum às grandes religiões.
Valor que pode ajudar a sociedade contemporânea no
combate ao fundamentalismo e à intolerância.
O suíço Alain de Botton, autor de Religião para Ateus
(ed. Intrínseca), entre outras obras, foi um dos que aproximou a filosofia da
espiritualidade? Botton é agnóstico e, de certo modo, um sátiro. Ele sustenta
que nossa cultura combinou habilmente a religião e um saudável ceticismo.
Recentemente, criou The School of Life, iniciativa global focada em
conferências sobre como o conhecimento pode ajudar as pessoas a viver de
maneira mais produtiva, apropriada, para que possam encontrar suas vocações,
bem como superar seus medos, problemas e limitações. Alguns se divertem
chamando a iniciativa de filosofia de butique, autoajuda ou assemelhados. Penso
que isso é uma bobagem. Conheci exímios acadêmicos que pareciam conhecer muito
pouco sobre a vida. Gostaria muito de viver em um mundo em que as pessoas se
encontrassem para ler e pensar sobre a melhor maneira de viver, com abertura e
generosidade. O pensamento deve superar os limites do mundo acadêmico e se
tornar um ativo do cotidiano. Na pior das hipóteses, isso melhoraria a qualidade
de nossa vida pública, além de qualificar um pouco o mar de opiniões que habita
as redes sociais.
Você enxerga perspectivas para a problemática da
intolerância religiosa? Esse é o maior desafio do século 21. Por inúmeras
razões históricas, o fundamentalismo islâmico recrudesceu nos países menos
estruturados, mais autoritários, com bolsões de pobreza. Mas também soube
recrutar jovens ingleses. Dizem que são 500 apenas no chamado Estado Islâmico.
Trata-se de um retrocesso civilizatório. São religiosidades que não passaram
pela revolução renascentista e iluminista, calcada na separação entre Igreja e
Estado. Como lidar com isso? A violência é o último caso, porque ela é reativa
e tende a provocar mais radicalismo. Acho que não há outra solução que não a ampliação
do diálogo, do debate, da escolarização e a abertura do pensamento. Estes são
valores ocidentais, por excelência, e oxalá se tornem valores universais, em
algumas gerações.