‘Adolescência’: quem educa na era digital? Série propõe reflexão sobre o papel de pais, escolas e redes
O foco central da obra — que não tem a intenção de culpar pais ou escolas — é, na verdade, demonstrar, com sensibilidade e profundidade, a complexidade que envolve a formação da identidade de um indivíduo
A série ‘Adolescência’ traz à tona um ponto essencial que ultrapassa os alertas comuns sobre os riscos enfrentados por crianças e jovens – Divulgação/Netflix
A série ‘Adolescência‘, da Netflix, traz à tona um ponto essencial que ultrapassa os alertas comuns sobre os riscos enfrentados por crianças e jovens hiperconectados. Um universo que, para muitos de nós, adultos, ainda é desconhecido. O foco central da obra — que não tem a intenção de culpar pais ou escolas — é, na verdade, demonstrar, com sensibilidade e profundidade, a complexidade que envolve a formação da identidade de um indivíduo. Se antes, essa formação era sustentada, principalmente, por três pilares — família, escola e comunidade —, hoje ela é atravessada, de forma intensa e contínua, pelas redes sociais.
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Relação das crianças com o mundo
Para expandir esse olhar, é pertinente trazer, ainda que brevemente, a contribuição do psicanalista inglês Donald Winnicott. Em seus estudos, — reunidos no livro ‘Privação e Delinquência‘ — ele analisa os comportamentos antissociais e a dificuldade de muitas crianças em se relacionar com o mundo. Segundo Winnicott, esses comportamentos estão frequentemente ligados à experiências precoces de privação emocional, marcadas pela ausência de um “ambiente suficientemente bom” . Ou seja, um espaço afetivo estável, acolhedor e previsível, essencial para o desenvolvimento de um self autêntico. Na falta desse ambiente, a criança aprende a se adaptar ao meio através de um falso self, moldado para obter aceitação, mesmo que isso custe sua espontaneidade e autenticidade.
Transpondo essas ideias para o contexto atual, especialmente no universo adolescente, podemos reconhecer como as redes sociais, muitas vezes, ocupam o lugar de uma espécie de compensação emocional. A busca por curtidas, comentários e validação digital pode ser compreendida como uma tentativa de preencher lacunas afetivas mais profundas — uma busca por reconhecimento que talvez tenha falhado em outros espaços da vida. Esse é apenas um exemplo — e ainda superficial — diante da densidade tratada pela série, que aborda também temas mais dramáticos, como o ato criminoso cometido por Jamie Miller, personagem interpretado com brilhantismo por Owen Cooper.
Formação subjetiva dos adolescentes
Sob a ótica de Winnicott, um jovem que não encontra segurança emocional no mundo real pode passar a construir sua identidade a partir da percepção do outro no mundo virtual. Isso reforça comportamentos que garantam aprovação social, ainda que o afaste de quem realmente é. A série mostra, com sensibilidade e lucidez, como a formação subjetiva dos adolescentes, hoje, é entrelaçada por múltiplos vetores: a família, a escola, a comunidade e as redes. Esses pilares não atuam de forma isolada — eles se influenciam, se atravessam e se responsabilizam mutuamente. E é nessa complexidade que reside a potência da narrativa.
Diante disso, uma pergunta se impõe: na ausência de um ambiente suficientemente bom, construído coletivamente por todos nós, estariam os jovens buscando, nas redes e na virtualidade, o acolhimento que não encontram no mundo real?
Reflexões para os adultos
Duas reflexões ficam para nós, adultos — sejamos pais, educadores ou apenas presenças atentas no entorno de adolescentes. A primeira: a vulnerabilidade dos jovens diante do universo digital pode estar enraizada em experiências anteriores de privação emocional — onde o reconhecimento, o afeto e o vínculo falharam, não apenas no ambiente familiar, mas na escola e na comunidade. É importante lembrar que a adolescência, por si só, já é um período de transição delicado, marcado por transformações biológicas, sociais e psíquicas. É justamente nessa fase, que o jovem se volta ao mundo em busca de si mesmo. E é nesse movimento, que o olhar do outro passa a ter um poder imenso: o de validá-lo ou excluí-lo.
A questão não é vigiar ou controlar o adolescente, mas, sim, construir vínculos reais. Conhecer o seu mundo, escutar com interesse genuíno, observar sem julgamento. É a partir da presença — física, emocional e simbólica — que nasce a confiança e a parceria. E, mesmo com tudo isso, algo ainda pode nos escapar. Mas é preciso tentar. Não há manuais. Porém, há o gesto de atenção, o exercício do cuidado e o compromisso de estar junto.
A segunda reflexão, talvez a mais desafiadora, é: como nós, adultos, vamos nos comprometer, cada vez mais, a conhecer esse universo digital e estar presentes — por eles e por nós mesmos? Porque, no fim das contas, educar na era digital é, antes de tudo, um convite à presença: menos controle, mais vínculo; menos julgamento, mais escuta.
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Blenda Oliveira é doutora em psicologia pela Pontifícia Universidade Católica (PUC-SP) e psicanalista pela Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo (SBPSP). É autora do livro Fazendo as pazes com a ansiedade, publicado pela Editora Nacional, indicado ao Prêmio Jabuti em 2023. A especialista também palestra sobre saúde mental e autoconhecimento e vem se dedicando ao tema do envelhecimento e solidão.
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