Imagine você admirar, se inspirar e se emocionar com uma pessoa que você considera símbolo de fortaleza e superação? A história que eu trago, hoje, é tão emocionante que faz sentir uma conexão de imediato e ainda traz à tona os sentimentos mais genuínos de conexão e empatia à outra pessoa. Agora imagine descobrir que, no final, tudo não passava de uma mentira? Essa é a história da séria da Netflix, baseada em fatos reais. ‘Vinagre de Maçã’ retrata a história de Belle Gibson, uma influencer australiana que enganou milhões ao afirmar ter câncer e tê-lo vencido com seus próprios produtos e receitais naturais.
E a questão que sempre vem à tona é o que faz essas pessoas mentirem tanto? E como é possível que tantas pessoas sejam enganadas? Ou, melhor ainda, como podemos nos proteger disso tudo? A história de moça é um retrato poderoso do impacto da manipulação e do narcisismo no mundo contemporâneo, potencializado pela era digital.
O que dizem a neurociência e a psicologia?
A neurociência traz muitas respostas para tudo isso e, sim, qualquer um de nós está propício a ser enganado. Isso não é ingenuidade. A verdade é que, raramente, conseguimos enxergar no outro algo que não faríamos. Já a psicologia explica porque tantas pessoas acreditaram em Gibson e no seu poder da manipulação.
Por que as pessoas acreditam?
O que acontece é que o nosso cérebro procura atalhos, isso gera uma economia de energia cognitiva, que, por sua vez, faz com que a não demoremos tanto tempo para fazer escolhas e tomar decisões. Se uma história parece congruente, e se, ainda, vem com elementos emocionais que cativam, é mais fácil que o cérebro interprete essa história como confiável e verídica. No exemplo da série, é de comum acordo – socialmente e moralmente falando – que não deve se mentir sobre assuntos tão sérios, como ter um câncer. Então, se uma pessoa diz que tem o diagnóstico da doença, dificilmente vamos achar que aquilo é mentira. É um viés, no qual nossa mente usa como um atalho para confiar.
Efeito Halo
Outra questão importante, abordada em ‘Vinagre de Maçã’, é a aparência. Existe um efeito chamado efeito Halo, cunhado por Edward Thorndike, que, em inglês, significa auréola (o objeto que fica na cabeça dos anjos). Segundo essa teoria, temos a tendência de interpretar o todo, por apenas uma característica. Esta pode ser um traço físico, postura, tom de voz, carisma, vestimenta, entre outros. A partir dela ou do conjunto, alguns têm a tendência de colocar uma auréola invisível na cabeça dessa pessoa e tudo o que ela diz passa a ser confiável.
Ou seja, é um mecanismo cerebral que nos ajuda a efetuar decisões de forma mais rápida para agiliza a nossa vida. Com isso, pessoas carismáticas com certos tons de voz e aparência podem fazer com que a achemos confiável de imediato e com isso podemos cometer erros.
Atmosfera de ‘Vinagre de Maçã’
Agora, imagine um público que se sente vulnerável e está busca de uma esperança. Então se depara com uma menina jovem, bonita, bem-sucedida e que diz que venceu o câncer sem precisar dos pesadíssimos tratamentos convencionais? Soluções simples para problemas complexos são extremamente atraentes. Tendemos a acreditar no que queremos ouvir e não, necessariamente, na realidade. É por isso que gurus do desenvolvimento pessoal e de terapias não comprovadas fazem muito mais sucesso do que as terapias médicas convencionais. Vale lembrar que, com o poder da Internet, tudo isso é potencializado e replicado – e isso é bastante mostrado em ‘Vinagre de Maçã’.
O poder da Internet mostrado em ‘Vinagre de Maçã’
Se aquela pessoa tem muitas curtidas e diversos seguidores, ela se torna facilmente uma autoridade. Tendemos a confiar em quem os nossos iguais confiam. Este comportamento é um atalho da nossa mente, porque, se tivéssemos que bolar uma estratégia para analisar todas as situações para concluir se é ou não confiável, isso demandaria muita energia do nosso cérebro. Assim, as redes sociais são o atalho perfeito para sabermos se vamos confiar ou não em alguém nos dias de hoje. E isso é feito de maneira inconsciente.
Como não se enganar na Internet?
Precisamos estar atentos aos charlatões que podem ter transtornos de personalidade, como o antissocial e o narcisista. De acordo com Otto Kernberg, um dos maiores estudiosos sobre transtornos de personalidade, as que possuem traços narcisistas manipulam para conseguir aclamação e validação, alimentando uma imagem grandiosa. Elas se valem de estratégias como:
- Narrativas exageradas: Tudo em suas vidas é grandioso e dramático. Eles sempre são o centro das atenções e/ou os mais sofridos, mais bem sucedidos;
- Vitimização constante: Quando confrontados, têm uma desculpa ou repassam para terceiros. A culpa nunca é deles, e sim dos outros e do mundo;
- Exploração emocional: Podem ser bondosos para os outros, mas isso nunca é para o bem alheio, mas para seu próprio. Buscam validação constante e, por vezes, querem manipular e tornar aquela pessoa dependente. Elas te fazem sentir especial até o momento não precisarem mais de você;
- Pouca empatia: Usam do outro para benefícios próprios, não se importando com o sentimento alheio;
- Possuem necessidade de serem constantemente admirados;
- Possuem hipersensibilidade à críticas.
Síndrome de Munchausen
Na série, também pude perceber a Síndrome de Munchausen. Nela, as pessoas fingem estarem doentes para obter benefícios diversos, tanto emocionais, quanto monetários. Ainda me chamou atenção a cena qual ela mimetiza uma crise convulsiva que precisou ser em um lugar público e na frente de várias pessoas, inclusive de seu filho.
Papel de vítima
O papel de vítima dá um palco muito especial. É um lugar que tem a comoção e compaixão dos outros. Muitas vezes, abre caminho para que a mesma tome diversas atitudes, que são perdoadas ou justificadas devido à questões de doença. Para aprofundar ainda mais neste tema, conversei sobre o tema abordado em ‘Vinagre de Maçã’ com a especialista Tammy Marchiori, neuropsicóloga.
Ela complementou: “A melhor forma de lidar com um narcisista manipulador é desarmá-lo sem confronto direto. Narcisistas precisam prever suas reações para manter o controle, então quebre esse ciclo. Responda de forma neutra e impessoal para não alimentar o jogo emocional. Repita sua posição sem entrar em debates. Desvie a conversa com perguntas inesperadas e evite compartilhar informações pessoais que possam ser usadas contra você. O segredo não é tentar convencê-lo ou ganhar a discussão, mas não jogar o jogo dele. Quando a manipulação não encontra resistência emocional, ela perde força”.
‘Vinagre de Maçã’ ensina que devemos estar atentos a discursos exageradamente emocionais e histórias grandiosas. Ademais, também precisamos ficar de olho em pessoas que nunca assumem a culpa e constantemente viram o jogo, fazendo todos parecerem culpados. Por fim, há ainda as que evitam questionamentos e se colocam como vítimas e atenção maior ainda para promessas de soluções milagrosas sem respaldo científico. A manipulação está por toda parte, mas conhecimento é poder. Quanto mais aprendemos sobre esses mecanismos psicológicos, mais nos tornamos capazes de identificar e evitar armadilhas emocionais. Porque o maior escudo contra a manipulação é a consciência e o conhecimento. Fique de olho!
Sobre a autora
Jéssica Martani é médica psiquiatra, criadora do canal brilhantemente no you tube, especialista em TDAH e saúde mental, e coordenadora da pós-graduação reconhecida pelo MEC pelo Instituto TDAH e Universidade Anhanguera saiba mais @dra.jessicamartani.