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Beleza gera mais beleza? Quando olhamos para o belo do cotidiano trazemos para dentro de nós o melhor

Já pensou se as pessoas fossem educadas para agir com mais respeito independentemente da ocasião? O gesto se espalharia em ondas, dissolvendo a rigidez – e a anestesia – do mundo. E alimentaria o espírito, que necessita de graça para viver

Beleza gera beleza? – Shutterstock
Fui assaltada. Pela beleza. Era uma terça-feira luminosa, por volta de 11h. Parei o carro no farol vermelho, com o vidro aberto. Um homem, segurando quatro buquês de rosas na mesma mão se aproximou e, como quem aponta uma arma, ostentou aquele mar de rosas, bem diante do meu nariz. Deu para sentir o perfume. “São lindas!”, comentei. O farol abriu e segui em frente, com um sorriso. Senti que o vendedor quase me ofereceu um ramalhete de presente, pelo encanto que as flores despertaram em mim. A beleza de algo ou alguém talvez possa ser medida assim, pelo tamanho do impacto e deleite que provoca. A imagem daquelas flores robustas, envoltas em celofane, me acompanhou até em casa. 
Ao chegar, o encanto se quebrou. Abri o laptop e, no meu feed de notícias, uma amiga dizia: “Eu não quero ver um homem sendo queimado vivo!”, referindo-se a mais um vídeo-barbárie dos terroristas islâmicos, exibido nas redes sociais naquela semana. Entre o horror e as rosas, lembrei do que tinha ouvido há poucos minutos: “Ver o belo é um treino e uma escolha”, disse o professor Basilio Pawlowicz, filósofo e cofundador da Associação Palas Athena, organização sem fins lucrativos que tem como missão aprimorar a convivência humana por meio da articulação  de culturas e de saberes diferentes. Bonito, não? Professor Basilio, um doce senhor de olhos azuis, sotaque argentino e fala suave, confessa que todos os dias pela manhã se deprime “un poquito” ao ler os jornais. “As feiuras do mundo são mais do que evidentes. Resgatar o belo é uma necessidade imperiosa. Mas onde ele está?”, o filósofo mesmo se pergunta. 
Bem-humorado, se declara compadecido com minha dura tarefa de buscar o significado da beleza e traduzi-la em palavras. “A clareza do jornalista é uma gentileza para o leitor. Sem beleza, ninguém lê nada”, ele desafia. “Pergunte a um sapo o que é belo e ele dirá que é sua fêmea. Pergunte a mesma coisa a um filósofo e ele responderá com um imbróglio”, brinca, citando Voltaire. Para sair do “imbróglio”, três parágrafos depois, vamos à beleza que mora na filosofia. Não há como fugir do feio, concordamos eu e o sábio Basilio. Somos produtos desse tempo, portanto, possuímos as virtudes e defeitos dele. Reconhecer a existência da feiura, e, no entanto, optar bela harmonia (sem se alienar), é um caminho possível. Imagine: “Se alguém lhe oferece um prato de comida estragada, com mau cheiro, o que faz? Vai comer? Você é o resultado daquilo com o que se alimenta. Da qualidade dos pensamentos depende a qualidade da nossa vida. Se nos comprometemos apenas com as fealdades do mundo, enxergando apenas o que há de ruim, também nos tornamos feios, deprimidos, cúmplices dos horrores”, diz o professor. 
“O belo é o esplendor do verdadeiro” – Platão

Chegamos assim à Platão, para quem o belo está diretamente ligado ao bom. Ética e estética andam juntas. No século 5 a.C., o pensador grego definiu o termo como um arquétipo, como se existisse uma matriz da beleza. Esse conceito permaneceu até o século 18, embora filósofos como Montaigne e Descartes tenham afirmado que a definição era um equívoco, defendendo a ideia de que a beleza é o que somos capazes de sentir e julgar como tal. Ainda assim, nesse longo período, o modelo platônico prevaleceu – prova disso é que nas artes, tudo o que fugia ao classicismo grego era condenado. Pintores como Monet, Cézanne e Van Gogh tiveram suas telas avaliadas como simples rabiscos sem valor. A primeira sinfonia de Beethoven sofreu severas críticas. 
O que não se pode negar é que os artistas são excelentes pedagogos nessa disciplina. “A partir da pintura, da música, da dança, eles conseguem aproximar as pessoas”, pontua Basilio. Enquanto a moral depende do juízo exterior, a ética parte de princípios internos. Portanto, os artistas seriam professores de ética ao promover a “estesia” – do grego aisthesia, sentimento que desperta o belo. Daí a palavra anestesia, ou incapacidade de enxergar o belo – um mal do cotidiano contemporâneo, em que, pela pressa, excesso de informação e de afazeres, muitas vezes somos dessensibilizados. “Ter o belo à frente dos olhos ajuda a trazê-lo para dentro de nós. Desperta o amor pelo bem. Se você é ético, nada do que fizer será feio. O belo é bom”, insiste Basilio, voltando a Platão. 
“Belo é tudo quanto agrada desinteressadamente” – Immanuel Kant
Quem vive em um ambiente bonito e organizado, por exemplo, sente-se melhor do que quem mora no caos. Cercar-se de arte, flores e estímulos visuais positivos embeleza também o que está ao redor. Faz lembrar a ação recente de uma marca de tintas de parede, que consistiu em formar pintores em lugares que precisavam de uma demão de tinta, como aconteceu na favela da Maré (RJ). Diante de suas casas coloridas, os moradores relataram que a autoestima melhorou. Esse movimento de despertar para o bem-feito aconteceu há pouco mais de uma década em Medellín, a segunda maior cidade da Colômbia, tida como uma das mais violentas do mundo. Por meio de uma ação conjunta, em 2004, uma revolução foi deflagrada na metrópole, sob as bandeiras da educação, da cultura e da reurbanização – o que incluiu um trabalho sério de cuidado com as ruas e equipamentos públicos. A criminalidade e os índices de violência despencaram, a ponto de, em 2012, Medellín receber da ONG Urban Land Institute o título de “Cidade Mais Inovadora do Mundo”. Por essas e outras, os gregos vislumbraram lá atrás o potencial pedagógico da beleza, no entendimento de que o “espetáculo” do belo faz bem à saúde. Outra forte crença que delineia o conceito de beleza, desde a Antiguidade, é o de que ela está ligada à proporção. Pitágoras (entre 570 e 500 a.C) foi o precursor dessa visão estético-matemática, como narra o italiano Umberto Eco, no clássico História da Beleza ” (ed. Record): “Pitágoras acreditava que todas as coisas existem porque refletem uma ordem, porque nelas se realizam leis matemáticas que são ao mesmo tempo condição de existência e beleza.” Assim, uma pessoa bem-apessoada teria uma razão de ser ligada à sua forma. Artistas, arquitetos e escultores aplicaram essa proporção áurea em suas obras. O rosto da Monalisa tem uma altura 1,6 vezes maior que sua largura. Na natureza, o bonito se encaixaria dentro dessa proporção de 1.618, utilizada na construção de templos, palácios e pirâmides. 
“Proporção é tudo na vida”, acredita o fotógrafo J.R. Duran. Mestre em clicar beldades e celebridades, Duran lembra que a proporção é necessária na cozinha, ao preparar uma receita, ao compor uma música, ao desenhar um edifício. Quando se cria uma imagem plástica, obviamente é essencial trabalhar dentro dos princípios de harmonia e simetria. Mas as regras da beleza nem sempre se aplicam à fotografia. “Mesmo que a pessoa não tenha os traços acadêmicos de Da Vinci, ela pode ser atraente, porque é charmosa, porque a combinação da personalidade e da estética transmite beleza”, diz. E o que essas pessoas que despertam olhares têm que as outras não têm? “São pessoas, em primeiro lugar, interessadas por elas mesmas”, diz. Interessadas no autoconhecimento. A imagem irradia seu conteúdo. Para Duran, “O belo é interessante. O não-belo é desinteressante”, decreta. Ou seja, uma pessoa não consegue ser bela tentando ser algo que não é. E sobre o recorte de beleza que o fotógrafo faz? “A beleza não existe. A beleza é um sonho”, provoca Duran. “É apenas o espelho de um ideal projetado no olhar do outro. Sequer posso dizer que uma pessoa sem graça na foto, não seja pessoalmente atraente. Só posso afirmar que não existe resposta única”, opina. 
“Ainda não vi ninguém que ame a virtude tanto quanto ama a beleza do corpo” – Confúcio

Padrão de beleza é um dos temas de estudo da historiadora Denise Bernuzzi de Sant’Anna, da Pontifícia Universidade Católica (PUC), de São Paulo. Autora do recém-lançado História da Beleza no Brasil (ed. Contexto), Denise narra como o conceito vem mudando século após século. Nem todas as épocas ou culturas tiveram a mesma ideia sobre o que é proporcional, por exemplo. No Brasil pós-anos 80, o culto às nádegas femininas empinadas é diferente da paixão, pré-anos 50, pelos quadris largos. “Quando o medo da fome imperava, era lindo ser cheinho. A abundância alimentar trouxe a obesidade, e, na contramão, a obsessão pela magreza”, decifra ela. 
Na época do pós-guerra, o modo de vida americano foi amplamente exportado e, com ele, um novo apelo para os cuidados pessoais. O cinema hollywoodiano mais as revistas femininas difundiram modelos mais “práticos, leves e acessíveis” do que aqueles pautados pelas pin-ups. “A preocupação com o embelezamento deixou de ser só da mulher”, diz Denise. Atualmente, segundo a historiadora, essa busca estaria relacionada ao sucesso na vida amorosa e profissional. Entre a diversidade de padrões, o anseio por uma pele sem rugas é o eterno objeto de desejo.
Principalmente no Brasil, obcecado pela juventude. Na Europa, não é bem assim. Lembro uda história que a empresária Costanza Pascolato contou numa de suas colunas na extinta revista Lola. Ela dizia que flagrou uma conversa de casal em que a mulher se dizia preocupada com as linhas que começavam a marcar seu rosto e perguntava ao namorado ou marido se ele achava que ela devia fazer Botox. Ele, carinhosamente, respondeu que achava que não, pois aquelas eram também marcas do tempo que estavam juntos. “A pele é a alma visível”, define a psicodermatologista Iara Galiás Yoshinaga. Em sua visão, só não se sente bonito quem não se descobriu. Ao longo da vida, quem se conhece vai estabelecendo uma imagem corporal que dá harmonia, sem se importar com padrões. Em seu consultório, a médica diz que a mulher que mais chamou sua atenção, recentemente, era fora de série. Em uma festa de Carnaval, a moça, acima do peso, estava fantasiada de Minnie e exalava beleza. Outra é uma senhora de 92 anos, que se casou há 2. São mulheres que sabem se cuidar, mas não fazem disso a razão de viver. “Uma pessoa bonita é aquela que não se trai. A beleza reflete aquilo que você conta para si mesmo e o outro percebe”, traduz.
“Ó beleza! Onde está tua verdade?” – Shakespeare

Em um dos diálogos do livro Retrato do Artista quando Jovem (ed. Civilização Brasileira), James Joyce afirma que é preciso ter três coisas para desenvolver a beleza: inteireza, harmonia e irradiação. Inteireza significa ser completo em si. “Quem possui luz interior, a irradia. Se tem escuridão, escurece o que observa”, diz o sábio Basilio. Entre os índios Mapuche, da América do Sul, quando alguém faz algo de errado, é costume dizer: “Desculpe, não vi a sua luz”. Mas como acender a beleza da alma? “Ela gosta de lugares esquecidos”, reza a sabedoria celta. No livro Anam Cara (palavra gaélica para “amigo da alma”), o teólogo John O´Donohue defende que é necessário cultivar a solidão para acessar a profunda beleza que há dentro de nós. “Nas frestas e cantos esquecidos do isolamento, podemos descobrir o senso da própria beleza”, diz ele. Para o mestre espiritual Sri Prem Baba, todas as virtudes desembocam na beleza; tanto na sua percepção (capaz de acordar os outros valores), quanto na sua manifestação. Ao expressar valores positivos, nos tornamos fontes desse bem. “A beleza é ao mesmo tempo uma expressão do êxtase e uma forma de sustentação dele. Você pode estar no inferno, ao ver uma bela imagem, se eleva”, diz.
 Como no filme A Grande Beleza , de Paolo Sorrentino – um raro casamento entre a plasticidade das imagens e das palavras. Jep Gambardella, o protagonista, é um jornalista que já viu de tudo. Por achar que já viu de tudo, vive entediado e busca sentido nas coisas. Seu conflito é ter escrito um único livro.  Em uma cena marcante, ele conversa com uma freira considerada “santa”. Ela lhe pergunta o motivo de nunca mais ter escrito uma obra. Resposta: “Acho que  eu procurava a grande beleza”. Nas entrelinhas, o filme sugere que “a grande beleza” está nas “pequenas belezas”. “E o faz por meio do uso de uma câmera em movimento permanente, tal como a vida, que acompanha as pessoas e os acontecimentos em seus preciosos e mínimos detalhes. São os seus zooms in, seguidos de zooms out, da amplitude de uma grande angular, que nos permitem apreciar a vida para além de nós mesmos”, comenta a psicanalista Giovanna Bartucci, estudiosa da relação entre cinema e psicanálise, autora de Onde tudo acontece – Cultura e psicanálise no século XXI (ed. Civilização Brasileira). Giovanna resume sua impressão sobre a obra, do ponto de vista do belo: “O extraordinário do filme está em que, para falar da passagem do tempo, da vida em face da morte, o diretor coloca o espectador no lugar de observador, daquele que termina por dar significado às pequenas coisas da vida”, observa ela.
Quando, como Jep, nos damos conta do belo nas miudezas do cotidiano, passamos a enxergar o sublime tanto numa minúscula joaninha como em uma majestosa paisagem de Roma. “Você se especializa em ver o belo no mundo e não para mais. Vê mais beleza, mais beleza…”, encoraja o professor Basilio. Mais importante do que definir o belo, portanto, é enxergar e produzir beleza no mundo. Por ora, decido: na próxima vez em que for assaltada por rosas, vou levar o buquê.

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