Peregrinação na Terra do Sol Nascente
Uma jornada espiritual de 1.200 quilômetros pelos templos sagrados da ilha Shikoku, no Japão
*Por Ana Pessoa*

Uma jornada espiritual de 1.200 quilômetros pelos templos sagrados da ilha Shikoku, no Japão
*Por Ana Pessoa*
Shikoku (四国) é a menor e menos povoada das quatro ilhas principais do Japão, e cenário da peregrinação de mesmo nome. A rota circular, que completa 1.200 quilômetros, é uma das mais desafiadoras do mundo, tendo como cenário montanhas, praias rochosas, rios caudalosos e florestas inóspitas, leva até 60 dias a pé, ou 25 de carro ou ônibus.
A jornada é sagrada para o Xintoísmo (神道: Shintō), considerada por seus praticantes a religião indígena do Japão e/ou religião da natureza. Hoje, é considerado o modo de ser do Japonês, sendo muito mais uma filosofia que abraça e recebe outras religiões, como o Budismo, entre outras.
Jornalista e antropóloga cética, comecei a estudar shintoismo em 2016, quando um divórcio levou-me ao sopé do Monte Fuji, onde um monge me desafiou a (re)conectar-me com o sagrado. Entre idas e vindas e uma mudança para Singapura, em 2022 o shinto trouxe-me ao Japão para fincar morada. Foi quando meu guia no xintoísmo sugeriu que fizesse a peregrinação Shikoku. Recentemente completei a longa jornada de passagem pelos 88 templos da ilha. Foram duas etapas intensas, distribuídas em 30 dias de caminhada.
Aqui, algumas informações sobre essa experiência épica, região única e filosofia milenar.
Shikoku (四国) significa ‘quatro províncias’: Awa, Tosa, Iyo, e Sanuki que foram reorganizadas durante o período Meiji nas prefeituras de Tokushima, Kōchi, Ehime e Kagawa.
Tokushima é famosa pelos redemoinhos de Naruto, um dos maiores do mundo. E pelo Take Chikuwa, um rolinho de pasta de peixe envolto em bambu (take) natural, grelhando-o à perfeição. Kōchi é a terra da iguaria das iguarias: o katsuo tataki, feito com bonito levemente selado e temperado. Um sashimi com um topete ou moicano negro cujo sabor é incomparável. Suas praias compridas, com ondas ideais para surfe, contam com cabines para trocar de roupa, parques para caminhadas e uma praia de pedras roladas que, dizem, trazem sorte à três gerações de quem levar um punhado.
Ehime tem vistas cênicas que provam que o Japão é outro planeta, não outro país. Castelos no alto de montanhas, pontes que convidam ciclistas a cruzarem quilômetros sobre estruturas que desafiam a gravidade, onsens (casas de banho) com águas termais e paisagismo meticuloso que remete à uma pintura de Monet. Aqui, ainda está a pequena Aoshima, famosa Ilha dos Gatos, conhecida por seu grande número de residentes felinos e pequeno número de moradores humanos. Outro grande destaque é a produção de 40 tipos de cítricos, em especial a Mikan – laranjinha mascote da prefeitura.
Kagawa é a menor das quatro prefeituras, mas colossal em termos de cultura e história. Localizada na capital Takamatsu, a montanha de Yashima foi o campo de batalha de uma das lutas mais conhecidas entre os clãs Heike e Genji, descrita no clássico Tale of the Heike (平家物語, Heike Monogatari) – relato épico da luta entre o clã Taira e o clã Minamoto pelo controle do Japão no final do século XII, na Guerra Genpei (1180–1185).
Outra joia local é Naoshima, uma cidade insular no Mar Interior de Seto. Inhotim foi totalmente inspirado nessa cidade-museu. Construído na encosta, o Museu de Arte Chichu abriga pinturas da série ‘Nenúfares‘, de Monet. O Museu Benesse House exibe esculturas e instalações contemporâneas. Uma das icônicas esculturas de abóbora de Yayoi Kusama fica no Porto de Miyanoura. Na costa leste, o Projeto Casa de Arte é uma coleção de peças de arte arquitetônica. Basta embarcar no ferry e mergulhar no mais intrigante, livre e belo museu-cidade. Em termos de gastronomia, Sanuki udon (um tipo de macarrão udon) é a comida local mais famosa da província.
A jornada do peregrino por essas quatro províncias é comparada a um caminho simbólico para a iluminação, onde os templos 1–23 representam a ideia do despertar (発心, hosshin), 24–39 austeridade e disciplina (修行, shugyō), 40–65 iluminação (菩提, bodai), e 66–88 a entrada ao nirvana (涅槃, nehan).
O roteiro tem como base a experiência de disciplina e austeridade, e exige comprometimento, além de planejamento de agenda (para os múltiplos dias) e financeiro. Os cerca de 5 mil dólares americanos cobrem hospedagem, alimentação e transportes locais. Além disso, ele é integralmente em japonês, sem tradução. Não há pausa para tirar fotos ou passeios independentes, nada que saia do roteiro. O peregrino não é protagonista, não tira selfie, não atrasa o grupo ou questiona a programação. É um ato de humildade, fé e dedicação.
Shikoku é uma viagem para dentro. Um encontro com um eu ao qual se está sendo apresentado pela primeira vez. Hajimemashite (はじめまして): “prazer em conhecê-lo pela primeira vez”.
Jornalista, antropóloga, estudiosa do shintoísmo. Ao completar a peregrinação, Ana Pessoa foi diplomada como primeira embaixadora brasileira, e primeira não japonesa (gaijin), de Shikoku, pelos monges shingon
*Texto de Ana Pessoa