Carolina Carvalho e Raíssa Haizer passaram pela transição capilar e hoje produzem conteúdo sobre cabelo crespo na internet
Aos 15 anos, Carolina Carvalho decidiu não alisar mais o cabelo. Antes mesmo de entender a transição capilar, resolveu deixar seu cabelo natural crescer. Depois de 4 meses, com menos de um dedo de cachos crescendo na sua raiz, a adolescente cortou toda a parte lisa do cabelo. Sem pedir ajuda para os pais ou contar para qualquer colega, ela não hesitou em pegar a tesoura e se desprender das madeixas. No dia seguinte, 20 de novembro, ela chegou na escola com o novo visual. Pela coincidência, seu black começava a nascer no dia da consciência negra.
Depois de 10 anos, Carolina é uma influencer que fala sobre cabelos crespos e moda sustentável. Ela relembra que alisou o cabelo quando ainda era uma criança, por indicação de uma tia. Por crescer sem saber cuidar do seu black, hoje ajuda outras pessoas pretas com conteúdo sobre cabelo, dando dicas de cuidados, produtos e penteados para o público.
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A jovem aprendeu a cuidar do próprio cabelo. “Meu cabelo foi crescendo e fui aprendendo a tomar conta dele. Eu fui entender qual era o tipo de textura, porque ele pequeno era uma coisa, ele grande é outra”, relembra. Nesse processo, também descobriu as particularidades que vinham com a textura do seu cabelo crespo.
Após assumir os cachos, se permitiu experimentar diversas formas de usá-los. Carolina pintou o cabelo de várias cores, como azul, rosa e roxo. Também começou a experimentar penteados diferentes e há 5 anos a influencer colocou pela primeira vez twist, uma trança é feita a partir da torção de duas mechas do cabelo, um tipo famoso de texturização.
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“Foi um processo de muito conhecimento. Na internet, eu postava algumas coisas sobre penteado, mas bem básico porque não achava que as meninas iam querer aprender”, recordou Carolina. Com a pandemia da covid-19 e a maior concentração de pessoas na internet, seu conteúdo cresceu. Hoje, sua conta Plantação de Lavanda, já conta com mais de 100 mil seguidores no Instagram.
A resposta do público ao seu conteúdo é positiva, e suas seguidoras são engajadas nas propostas de penteados que Carolina ensina em seus vídeos. “As meninas olham eu fazendo e reproduzem, postam e me marcam ou mandam para mim. Eu fico muito feliz, porque está chegando para muito além”, comemora a influencer.
Além das garotas que aprendem a cuidar de seus cabelos com os vídeos de Carolina, outras usam da página como um lugar de acolhimento. “Algumas [meninas] chegam no meu direct e falam: ‘Poxa, Carol, eu não gosto do meu cabelo porque ele não define’, ‘Porque eu não sei usar o produto correto’ ou ‘Eu não sei qual é o tipo do meu cabelo'”, cita a jovem alguns dos desabafos que recebe. Como já passou pelos mesmos questionamentos, Carolina sabe auxiliar essas garotas.
O caso de Carolina e sua busca pelo cabelo natural não é singular. Segundo uma pesquisa feita por alunas da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), a procura pelo termo “transição capilar” cresceu em 70% no Google durante os anos de 2014 até 2017. Grupos no Facebook, comunidades da web e influencers surgiram para acolher pessoas passando por esse processo.
A luta pela aceitação do cabelo afro é antiga. Durante a década de 1960, o movimento Black Power foi marcado pela valorização do cabelo natural. Enfrentando os ideais de belezas eurocêntricos, a comunidade negra dos Estados Unidos parou de alisar os cabelos. Os penteados afros entraram em moda e o cabelo crespo ou cacheado, usado naturalmente com volume, se associou à militância política da época. O slogan “Black is beautiful” valorizava a beleza da negritude e seus traços.
A relação da autoestima de pessoas negras com o cabelo ainda é discutida. Ediane Ribeiro, psicóloga especialista em traumas, explica: “O cabelo tem uma valorização estética muito grande, principalmente para as mulheres. Nós não vemos, por exemplo, o cabelo branco ou a falta de cabelo dos homens serem julgadas de uma forma tão intensa quanto nas mulheres”.
Para a especialista, a discussão fica ainda mais densa com o fator racial. Se o cabelo já é um tópico sensível na sua relação com a feminilidade, em mulheres negras essa conexão se torna ainda mais delicada.
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“Quando falamos de mulheres negras, a questão ganha mais alguns degraus de profundidade, porque se soma a isso o fato de que o racismo propaga há décadas preconceitos e estereótipos negativos relacionados às características da população negra, em que o cabelo é um símbolo muito importante”, reflete a psicologa.
Entre as diversas violências que o racismo produz, a criação de uma estética branca de valorização dos traços europeus ainda impacta na formação do que é determinado como belo. “Esses modelos estéticos começam a ser projetados muito cedo, quando somos apenas crianças, e podem gerar o que as ciências sociais chamam de autoaversão ou auto-ódio”, comenta a profissional.
Crescer com esses ideais de beleza atrapalham na construção de uma relação positiva das pessoas negras com suas características. “Desde cedo nos é ensinado que existe um único padrão, que é o bonito correto e adequado, e quando nos olhamos no espelho, ficamos muito distantes desse padrão”, explica Ediane.
Querendo devolver a autoestima para pessoas negras, Raíssa Haizer também divulga na internet dicas de cuidados e penteados para cabelo afro. Dona do estúdio Mania de Tesoura, a cabeleireira trabalha com cabelos afros e vem desenvolvendo essa relação desde os 12 anos. “Passei pela transição e foi aí que eu descobrir esse mundo dos cabelos naturais. Eu não queria mais alisar cabelo de ninguém, e foi assim”, relembra Raíssa.
A estudante de jornalismo também explica como a transição capilar ajudou na construção da sua identidade e reconhecimento como pessoa negra. “Tinha uma questão de eu não me reconhecer como uma pessoa preta. Essas coisas, esses processos, surgiram depois que eu passei pela transição capilar”, recorda a jovem.
Ainda relembrando esse processo, Raíssa conta que durante essa mudança, ela tomou consciência do racismo e o impacto na sua vida. “Eu descobri que o racismo existe, porque até então eu não entendia. Eu achava que eu gostava de alisar o cabelo, mas eu tomei um baque. Eu não gostava de alisar o cabelo, eu era praticamente obrigada a alisar”, desabafa a profissional.
Voltar com o uso do seu cabelo natural não resolveu todas as questões de sua autoestima. Raíssa relembra um tempo onde apenas usou tranças, além buscar o cabelo completamente definido. Algumas das maiores dificuldades vinham através do entendimento de seu cabelo não apenas como cacheado, mas também como crespo.
Dentro da luta pela valorização do cabelo afro, ainda existe um esquecimento das curvaturas mais crespas. Isso é refletido no mercado de cosméticos que, apesar de mais incluso com cabelos ondulados e cacheados, ainda é escasso na produção para cabelos crespos. “Você sempre vê nos rótulos ‘cachos e crespos’ e a pessoa te fala assim: ‘pode usar no seu cabelo crespo’, mas o produto não foi feito pensado para o cabelo crespo”, explica a cabeleireira.
Raíssa reflete a exclusão de cabelos crespos nas demandas do mercado de cosméticos devido à ligação direta dessa curvatura com pessoas pretas, enquanto os cabelos cacheados e ondulados são mais encontrados em pessoas brancas. “AÍ a gente cai na história de novo do racismo, que é muito mais profundo”, pondera a jovem.
Quando produtos para essa curvatura aparecem no mercado, são ligados à promessa de transformar o crespo em mais aberto e cacheado, mudando sua textura. “Os produtos vêm com uma proposta de domar o cabelo, de abaixar o cabelo ou de proporcionar cachos. Inclusive, no TikTok a gente vê muitos vídeos de mulheres crespas voltando a usar química. Porque elas querem ter um cabelo que se pareça com cabelo cacheado e a indústria começou a perceber e oferecer químicas que façam isso”, exemplifica Raíssa.
Apesar dos diversos tipos de exclusão de sua textura no mercado, o relacionamento de Raíssa com seu cabelo afeta, de forma positiva, sua autoestima. “Cuidar do meu cabelo é a minha principal forma de autocuidado. Se meu cabelo está bem cuidado, eu me sinto mais confortável”, finaliza a influencer.
