Onde moram nossos monstros

Naquela criança interior que todos carregamos pela vida afora estão algumas das nossas maiores e mais intensas feridas, bem como nossa maior fonte de cura, criatividade, consciência e amor

Onde moram nossos monstros – Shutterstock
Débora lutava contra duas forças conflitantes: o desejo e o medo de ser mãe. Foi procurar ajuda na arteterapia para tentar desvendar a origem desse antagonismo. Descobriu que a relação conflituosa com a própria mãe, abusiva e autoritária, deixou uma ferida interna que a impedia de aceitar o fato de que queria, sim, ter um lho. Aprendeu a lidar com a autorrejeição e se transformou em mãe amorosa e dedicada.
Fernando, pacifista convicto e praticante de ioga, ficou feliz pela chance de colocar em prática sua loso a de vida na hora de educar o filho recém-nascido. Tudo corria bem até o menino completar 5 anos. Um dia, a birra da criança ativou nele uma raiva incontrolável, que o levou a bater com força no menino. “Eu me senti um monstro”, desabafou para a psicóloga e arteterapeuta Mônica Guttmann, a quem procurou em busca de ajuda. Descobriu que certos comportamentos do filho disparam nele um mecanismo inconsciente, remetendo-o ao tempo em que era brutalmente espancado pelo pai.
A psicologia acredita que todos nós somos crianças feridas porque, em alguma medida, não recebemos de nossos pais tudo aquilo de que realmente necessitávamos. Até porque eles também eram – ou são – crianças feridas. “Uma palavra mal usada pode ficar para uma vida inteira, dependendo da intensidade com que o processo se deu e da relação com os pais”, argumenta Mônica, que também é escritora e professora.
Mesmo empenhados em amar seus lhos, os pais são humanos e, como qualquer pessoa, sentem dificuldade em decifrar o que está por trás de um gesto agressivo, de um silêncio intransponível, de uma ironia cortante. A mãe dá comida, achando que o problema é fome, quando o que a criança deseja receber, naquele momento, é colo, atenção, carinho. Quem consegue adivinhar que um choro sem motivo aparente esconde um pedido de “me escute, mãe”?
ABANDONOS VIRAM FERIDAS
Cada demanda não atendida, cada frustração, cada sofrimento, e, por fim, a sensação de abandono, ficam impressos no nosso inconsciente, na memória das nossas células, como se fosse uma ferida. Muitas delas, quando não cuidadas, acabam sequestradas pelo ego, que as transforma em monstros. “Esses monstros ativam medos, autossabotagens, violências, abusos, fantasias, crenças e atitudes destrutivas”, explica a psicóloga.
Segundo ela, algumas crianças conseguem lidar com certas faltas, outras se ressentem e carregam, ao longo da vida, comportamentos danosos ou contraditórios que vão afetar sua trajetória, suas escolhas e todos os seus relacionamentos. “É o caso de pessoas que têm horror à mentira, por exemplo, e se pegam mentindo, manipulando, não sendo verdadeiras nas relações. Passam a usar certas situações em nome de um amor e de uma fidelidade que não existem. Elas encontram justi cativas para provar que aquilo que estão fazendo é verdadeiro, quando no fundo não é”, explica a arteterapeuta.
No caso da autossabotagem, ela está presente naquelas pessoas que conseguem o emprego dos sonhos, por exemplo, mas acabam sendo demitidas porque sempre chegam atrasadas ou não cumprem suas tarefas no prazo. No fundo, elas não se acham merecedoras desse bom emprego e, inconscientemente, atuam de forma a romper com ele.
“Uma parte de nós trabalha pelo sim e outra pelo não, é como se dentro de nós habitassem dois personagens: um a favor da vida, da cura, do crescimento e outro que sabota tudo isso, porque tem medo”, argumenta Mônica. Esse personagem que atrapalha nosso desenvolvimento reflete um lado nosso que ficou aprisionado na
infância, preso a crenças antigas, padrões antigos e que boicota nossas realizações. Essa resistência em querer e não querer gera monstros, cria doença e conflitos. E nos leva a atitudes contraditórias, como adiar para amanhã a finalização de um trabalho urgente ou se empanturrar de doces no segundo dia da dieta. “Existem autossabotagens mais drásticas, como a paciente que sonhou a vida toda em voltar a tocar piano e, quando finalmente comprou o piano, quebrou o dedo”, conta a psicóloga.
DANDO FORMA AOS MONSTROS
A boa notícia nesse cenário é que, com ajuda terapêutica, podemos começar a limpar nossas feridas internas, fazendo com que nossa trajetória se torne mais leve. No curso que oferece na Associação Palas Athena, em São Paulo, Mônica ajuda o aluno a dar forma aos monstros criados por essas dolorosas feridas. Os monstros da carência, da insegurança, do egoísmo, do medo e tantos outros sentimentos que abrigamos são esculpidos em argila ou biscuit.
“A partir do momento em que damos voz e reconhecimento às nossas feridas, elas se tornam nossas aliadas, gerando mais energia, força, luz e integridade. Isso acontece tanto em nossos processos pessoais, quanto a nível coletivo”, explica a professora. Ela acredita na e ciência da arteterapia para levar as pessoas a personificar desejos,
medos, carências. “No curso, vivenciamos esse processo de cuidado das feridas de maneira lúdica, literária e artística. Gosto da arteterapia, porque, ao materializar, dar uma cara para algo, ela já contribui para que aquilo perca força. A criatividade pode ser curadora e salvadora”, argumenta.
A experiência da psicóloga não deixa dúvidas: mesmo quem não tem intimidade com o mundo das artes é capaz de esculpir o monstro que o subjuga. Ela garante que nosso inconsciente, com sua enorme sabedoria e assertividade, envia rapidamente as informações das nossas feridas para o nível da consciência. “A imagem do monstro
vem pronta. Fica mais fácil dialogar com um monstro lá fora. Quando ganha concretude, você consegue conversar com ele. Dentro, a ferida fica meio inconsciente, uma coisa vaga”, diz Mônica.
A reação dos alunos ao se depararem com seus monstros é de surpresa, repulsa ou muita emoção. Aos poucos eles vão aceitando aquelas guras grotescas, que são a expressão concreta dos seus dissabores psicológicos, e acabam criando intimidade com elas. “O propósito é acolhermos nossos monstros com afeto, para que eles se tornem nossos aliados, bons companheiros”, afirma a professora.
A FAVOR DA VIDA
Com a troca de impressões em grupo, o processo de limpeza de feridas se acelera, porque os monstros se confrontam, se identificam, aprendem mutuamente, somam forças. Como resultado da mudança interna, tanto pacientes regulares da psicóloga como alunos do curso relatam que passaram a sentir menos raiva, menos culpa, a fazer melhores escolhas, a ter mais alegria e amor-próprio: “Uma vez reconhecidas e cuidadas, nossas feridas podem tornar-se fonte de criatividade, solidariedade, compaixão e amor”.
Mônica utiliza vários conteúdos terapêuticos para conseguir fazer emergir o monstro escondido dentro de nós, especialmente os ensinamentos de Jung. “Gosto
muito do conceito dele de sombra, que é tudo o que está inconsciente e atua na nossa vida. Posso não gostar de você, porque te acho egoísta, mas não estou vendo que eu também sou. Como não enxergo isso em mim, projeto no mundo lá fora. Para explicar esse conceito, uso a imagem do sol se refletindo em alguém. Essa pessoa não vai conseguir enxergar a própria sombra na parede, mas as outras pessoas, sim”, compara.
A arteterapeuta afirma que há dois grandes portais de emoção: um que nasce do amor e outro do medo. O do medo gera inveja, raiva, violência, abuso, egoísmo, ressentimento. Mas o maior medo do ser humano é de não ser aceito, não ser validado. “A busca desenfreada pelo dinheiro, pelo poder é, na verdade, uma tentativa de se sentir valorizado, seguro”, analisa ela. Portanto, só o amor pode nos salvar como indivíduos e como sociedade.
E o que dizer do pai pacifista arrasado por seu comportamento violento? “Em um segundo episódio, ele chegou a estender o braço para agredir o filho, mas conseguiu se segurar com a outra mão. Está no caminho de aprender a usar a agressividade de maneira criativa”, conta Mônica. Seu monstro está sendo domesticado e enfrentando nosso maior desa o como seres humanos: aprender a amar. “Os papéis que cada um assume têm essa proposta: buscar o amor de maneira ampla. Até as profissões que as pessoas têm, no fundo, são pretextos para desenvolver o amor….”, assegura.
 
Jung e os complexos
 
Mônica Guttmann explica alguns conceitos junguianos utilizados na arteterapia:
• Persona: as máscaras que usamos para esconder os monstros
• Complexos: as feridas internas que se tornam monstros
• Inconsciente coletivo e individual: aquilo que existe e não conhecemos
• Sombra: parte de nosso ser sobre a qual não temos consciência
• Criança interior: feridas e crenças que herdamos de nossos pais
 
Corrupção desde o início
 
Será que os monstros externos existiriam se cuidássemos melhor dos internos? As feridas coletivas nascem das feridas individuais, que acabam agindo contra nós mesmos e contra os outros. “Estamos vivendo um momento mundial e nacional de feridas e sombras vindo à tona com muita força”, diz Mônica Guttmann. A ética, a justiça, a democracia, a compaixão, o respeito e a empatia são valores e atitudes de uma sociedade saudável emocionalmente. Se não cuidamos de uma ferida individual, ela acaba indo para o coletivo. “Se não trabalho o abuso ou o complexo de rejeição, vou abusar, vou rejeitar. Todas as feridas não trabalhadas
a gente repete, ninguém escapa disso. Repetimos tanto no nível individual quanto no coletivo”, explica ela. Ela dá como exemplo a corrupção, tema sempre presente
nas sociedades, mas nunca na luz, sempre na sombra. O sistema político que vivemos há anos, anos e anos é produto de uma cultura corrupta, gerada por indivíduos corruptos. “O corrupto é aquele que se vende por algo que considera importante (dinheiro ou poder) – ou a pessoa que compra alguém. Essa é uma atitude de autodesvalorização, de baixa autoestima. Uma humanidade com autoestima baixa é o reflexo de crianças extremamente carentes, que não foram cuidadas nem respeitadas e, por isso, se sentem tão insignificantes a ponto de poderem ser vendidas ou compradas.” Fica claro que o autoconhecimento é a única saída.

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