Poucos lugares no mundo vibram em altas frequências de fé como a Terra Santa, região que compreende Israel e Palestina, no Oriente Médio. À procura de uma experiência mística, muito mais do que uma viagem turística, 23 amigos e fiéis ao cristianismo desembarcaram, em outubro de 2014, em Jerusalém, berço de três grandes religiões monoteístas – judaísmo, cristianismo e islamismo. O grupo passou oito dias entre ruelas apinhadas de peregrinos, muralhas milenares, colinas áridas e templos de todos os portes. Nessa caravana estavam o jornalista e escritor paranaense Laurentino Gomes, autor da trilogia 1808, 1822 e 1889 (Globo Livros), best-sellers sobre passagens cruciais da história brasileira, e o mentor espiritual Osmar Ludovico, de São Paulo, autor de Meditatio (ed. Mundo Cristão), eleito o guia da jornada. Juntos, eles percorreram os locais mais marcantes pelos quais Jesus Cristo passou, incluindo as montanhas da Galileia, o Mar Morto, a Via Sacra e o Santo Sepulcro. Impactada pela experiência, a dupla decidiu escrever o livro O Caminho do Peregrino – Seguindo os Passos de Jesus na Terra Santa (ed. Principium), que reúne dados históricos,
ensinamentos e meditações sobre a fé cristã. A seguir, eles contam o que sentiram e aprenderam no solo da revelação que dividiu a história do Ocidente entre antes e depois de Cristo, o filho de Deus.
Foi a primeira vez que vocês se viram na posição de peregrinos?
Laurentino – Em 2013, havia fechado um ciclo na carreira literária após a conclusão da trilogia 1808, 1822 e 1889 (que conta a história do Brasil desde a chegada de D. João VI ao país até a proclamação da República). Nessa época comecei a reler alguns livros bíblicos importantes. Em um deles, o do Eclesiastes, li que tudo neste mundo tem o seu tempo; cada coisa, a sua ocasião. A mensagem caiu como uma luva para mim. Decidi que era hora de fazer um mergulho interior em busca de orientação e paz espiritual. Depois de passar por Roma e pelo caminho de Santiago de Compostela, na Espanha, foi a vez de ir para a Terra Santa.
Osmar – Esta foi minha segunda vez lá, em um intervalo de 15 anos. Em ambas viajei com amigos que pediram minha companhia. O que me atrai nesse local, além da história da revelação de Deus aos povos, é o fato de ser um centro espiritual para cristãos, judeus e muçulmanos. A história da humanidade e das grandes religiões começa naquela região. Dela vêm as antigas contribuições civilizatórias, formuladas por sírios, egípcios, etruscos, babilônicos, povos da Antiguidade que floresceram na atual Palestina, um lugar com uma ancestralidade muito forte.
Como vocês se prepararam para esta jornada?
Laurentino – Eu me preparei durante décadas, mas sem me dar conta disso. Era parte de uma busca profunda e menos visível por um significado espiritual
para minha existência e para o mundo que me rodeia. Na adolescência, fui seminarista por três anos. Saí ao descobrir que não tinha vocação para o sacerdócio. Anos depois, ao me tornar jornalista, afastei-me quase totalmente de qualquer prática religiosa. Depois de muito tempo, contudo, comecei a perceber que a resposta para
a minha busca estava nas raízes cristãs que eu rejeitara na juventude. Começava ali meu processo de renascimento espiritual, que coincidiu com um período
de crise pessoal, repleto de dor e sofrimento. O sentido de tudo o que eu buscava já estava arraigado dentro de mim, embora eu até então não fosse capaz de reconhecê-lo.
Osmar – Levo uma vida meditativa e contemplativa. Então, quando chegou a hora de partir para Israel, estava pronto. Mas acredito que a preparação ideal passa pela compreensão de que a viagem deve ser empreendida com o olhar de um peregrino, não de um turista, o que vai depender do grupo e do orientador espiritual. Em
Israel é muito fácil viver uma experiência cheia de excitação, euforia, superficialidade e consumo, perdendo a perspectiva de uma peregrinação mais meditativa em contato com o sagrado e o divino que cada um carrega dentro de si.
O que é ser peregrino?
Laurentino – Todos nós somos, de alguma forma, peregrinos neste mundo. A rigor, não sabemos bem de onde viemos, por que estamos aqui ou para onde vamos. Ainda assim caminhamos. É possível também ser um bom peregrino sem nunca sair de casa ou deixar a cidade natal. Nesses casos, a viagem se dá para dentro de
si mesmo. Para quem associa o peregrino com o turista, há uma diferença básica. O turista olha para fora. Quer se apropriar e consumir tudo o que vê. O peregrino volta-se para dentro de si mesmo enquanto caminha. Ele faz, portanto, um caminho em direção a si mesmo e em direção a Deus.
Osmar – A vida é uma caminhada que vai do nascimento à morte. Nesse percurso, transitamos por certos lugares, encontramos pessoas e vamos aprendendo à medida que caminhamos. E, quando a gente se desinstala e se dirige a um lugar desconhecido, de alguma forma aprendemos a viver com menos. O peregrino não pode carregar muita bagagem. Tem de ficar leve. A outra peregrinação se dá a partir da fé, no meu caso cristã, daquilo que sou em direção àquilo que Cristo é. No intuito
de nos tornarmos mais parecidos com ele: bom, amoroso, solidário, justo.
Quais foram as passagens mais marcantes ao longo da viagem?
Laurentino – O programa incluía tempo para visitas turísticas e momentos de silêncio, meditação e oração. A cada nova etapa, ouvíamos explicações sobre a importância histórica e arqueológica do lugar, sob responsabilidade de um guia israelense ou palestino. Em seguida nos reuníamos à sombra de uma árvore frondosa ou em local mais afastado do burburinho dos turistas para ouvir trechos das Sagradas Escrituras e uma reflexão conduzida por Osmar Ludovico. À noite, após o jantar, nos
encontrávamos novamente no hotel para compartilhar as impressões e emoções do dia. Os momentos de silêncio e de oração constituíram a melhor parte do roteiro. Foram os que mais me tocaram e me transformaram interiormente.
Osmar – Houve muitos momentos tocantes. No jardim do túmulo, vazio, onde possivelmente Jesus foi colocado, lê-se a inscrição da fala dos anjos que perguntam a Maria Madalena: “O que está fazendo buscando aqui? Não está aqui”. A mensagem primordial: Ele não está em Israel, Ele está em todo lugar. Outro momento interessante se deu durante um passeio de barco pelo Mar da Galileia (na verdade um extenso lago de água doce localizado no norte de Israel, na Palestina). Instruí o grupo a ficar em silêncio por 40 minutos e no meio do lago pedi que desligassem o motor. Essa experiência sensorial me emocionou. Pudemos ouvir os sons da água e do vento, contemplar a paisagem e lembrar que Jesus viu e sentiu tudo isso bem ali. Em Canaã, onde o lho de Deus transformou água em vinho em uma festa de casamento, refletimos sobre esse laço. Nessa passagem bíblica, o vinho acaba, precipitando o m da festa. Da mesma maneira, chega uma hora em que a alegria, o prazer e o lúdico se escasseiam na vida conjugal. Mas Jesus faz o milagre para que a festa continue. O vinho, então, aparece como símbolo da alegria e da possibilidade da renovação com a ajuda que vem do alto.
Como vocês avaliam a importância da convivência e da partilha depois da experiência desse percurso?
Laurentino – A disciplina de oração e meditação foi, aos poucos, estreitando nossos vínculos de amizade e cumplicidade. No começo, éramos pouco mais do que um típico conjunto de turistas brasileiros. No final da viagem, depois de dez dias na estrada, havíamos nos tornado um grupo solidário e fraterno, capaz de compartilhar ansiedades pessoais e, confesso, alguns segredos. Era como se algo misterioso houvesse nos transformado por dentro ao longo da jornada, de modo a nos dar uma nova
e iluminada identidade, confirmando desse modo um fenômeno peculiar das grandes peregrinações.
Osmar – A vida como um todo se alterna entre a dimensão da solitude, estar quieto consigo mesmo, com Deus, numa postura meditativa, e a partilha, o grupo, o outro. É um movimento da vida em si mesma, que precisamos aprender a fazer. Em muitos momentos a troca daquilo que se experimenta individualmente é importante para encontrar o outro e para que a experiência de solitude seja enriquecida por aquilo que o outro traz para mim. E Jesus tem isso. Ele fala para as multidões, está no meio de gente muito necessitada e, ao mesmo tempo, se retira para o jardim, para a montanha, para o deserto afim de ficar só, em meditação.
Podem falar mais sobre as características da meditação cristã?
Laurentino – A meditação cristã é totalmente diversa das outras tradições religiosas porque tem como guia o próprio Deus encarnado na pessoa de Jesus Cristo. É ele que nos orienta e dá sentido à nossa busca. Isso significa também que a meditação cristã exige uma total capacidade de entrega e a confiança em Deus. Tal postura
tem como resultado a gratidão, que, por sua vez, gera alegria. Um peregrino é sempre uma pessoa encantada, grata e alegre perante o sagrado.
Osmar – No século III, quando Constantino se converteu em imperador romano, a igreja saiu das catacumbas e foi para os palácios, deixando de lado a simplicidade. Nesse momento, um grupo de homens e mulheres se retirara para o deserto num primeiro movimento reformador da igreja. Eram os padres do deserto. Eles desenvolveram a leitura meditativa da Bíblia, que inclui o tempo de silêncio, de quietude, de sair da agitação e acalmar a alma. Nessa prática, o texto é lido não para
ser entendido ou explicado, e sim do ponto de vista intuitivo, imaginativo, trazendo a palavra para o contexto de vida. A partir daí é que o meditante ora, cultivando uma relação pessoal com Deus na intimidade.
O que a Terra Santa tem a ensinar de mais precioso a quem a visita?
Laurentino – Aprendi que uma região tão carregada de simbolismos, dores e esperanças pode ser plena de paz e harmonia, mas também repleta de medos e ansiedades. Depende da busca de cada peregrino e das respostas que espera encontrar. Existem armadilhas nesse caminho. A mais óbvia é o comércio abusivo que ameaça
transformar os lugares sagrados em parques temáticos religiosos. A balbúrdia do comércio procura tirar a atenção e o dinheiro do viajante. O clima de euforia e ruído exige muita paciência e disciplina do peregrino empenhado em fugir do consumismo e das distrações mudanças que dominam os lugares sagrados.
Osmar – É importante ter em mente que a Terra Santa é o berço de uma revelação, mas que ela não está presa lá. Então alguém que nunca visitou a região pode espiritualmente ir tão ou mais longe do que alguém que esteve lá dez vezes.
O que é, afinal, um homem de fé?
Laurentino – A Carta aos Hebreus, um dos textos mais bonitos e mais profundos do Novo Testamento, define a fé como a certeza daquilo que esperamos, mas ainda não vemos. A fé, portanto, está intimamente ligada à confiança e à esperança. A fé para mim é altamente libertadora. Ao aceitar e confiar em Deus, nos damos conta de que, a rigor, nada neste mundo está de fato sob o nosso controle. Somos frutos da graça divina e tudo o que nos cerca e nos acontece também depende da graça.
Osmar – Um homem de fé é aquele que encontra respostas na tradição cristã para questões existenciais profundas. Qual é o sentido da vida? Há vida após a morte? Qual o significado da minha existência? A fé se traduz na saudade que o homem tem de um amor perfeito, de algo que seja bom e harmonioso. Esses fiéis desfrutam do
que o mundo tem de bom e intuem a existência de um plano maior. Um lugar onde o mal e a morte não existem mais. Essa saudade que está no coração do homem é o que o move na busca por respostas.
Vocês tiveram algum insight acerca dos caminhos para a paz quando estiveram no Oriente Médio?
Laurentino – Jerusalém é um lugar sagrado para as três grandes religiões monoteístas – cristianismo, judaísmo e islamismo –, cujos fiéis somam mais de 4 bilhões de pessoas. As diferenças são tão profundas e antigas que dificilmente haverá uma solução política ou diplomática para elas. O significado de Israel e seus vizinhos no Oriente Médio é de natureza espiritual e, portanto, a busca da paz também tem de se dar no nível espiritual. A resposta para as dificuldades, no meu entender, está mais no silêncio e na oração do que na gritaria que marca a defesa intransigente dos pontos de vista de cada grupo ali presente.
Osmar – Tanto o judaísmo quanto o cristianismo e o islamismo têm como pai comum Abraão, o primeiro dos patriarcas bíblicos e fundador do monoteísmo, que migrou da cidade de Ur, na Mesopotâmia, para a Palestina, a Terra Prometida, em cerca de 1800 a.C. De acordo com a Bíblia, foi ele quem povoou aquela região, a partir de seus dois lhos, Ismael, patriarca dos povos árabes, e Isaque, patriarca dos hebreus. Como o primeiro era filho da escrava Hagar e o segundo, -filho da sua esposa Sara, eles seguiram caminhos diferentes. E essa herança espiritual enveredou para a rivalidade, prevalecendo o interesse, o desrespeito e o conflito entre os dois grupos. Os descendentes de Isaque formaram a nação de Israel e os descendentes de Ismael se tornaram islâmicos a partir do século V, através da pregação do
profeta Maomé. Ambos se consideram herdeiros daquela terra, o que só fez aumentar o radicalismo ao longo dos séculos. As muitas disputas armadas deixaram sequelas difíceis de reparar. A briga territorial mostra a ambiguidade humana. De um lado a capacidade religiosa de se transcender encontrada tanto no judaísmo como no islamismo; de outro, o permanente conflito bélico entre eles. A única possibilidade de reconciliação é o perdão. Só o amor e o perdão podem vencer o ódio e trazer a paz ao Oriente Médio.
Qual seria a interpretação mais coerente do legado de Jesus Cristo aplicada ao mundo de hoje?
Laurentino – A presença e o legado de Jesus Cristo nos ajudam a recolocar na perspectiva correta o significado da nossa existência. Vivemos em um mundo opressivo, que exige das pessoas desempenho às vezes desproporcional às nossas forças. É um mundo movido a consumo e entretenimento, que procura nos desviar da nossa essência espiritual. É também um mundo que promete recompensa e felicidade instantânea, mas nos deixa cada vez mais estressados e angustiados. A trajetória cristã tem como ponto de partida nossa condição humana, frágil, fraca, medrosa e egoísta, capaz de pensar e agir com maldade, e prossegue em direção à perfeita humanidade de Jesus Cristo.
Osmar – O amor. Porque só ele representa a possibilidade de eu me relacionar com o outro que é diferente e, por vezes, divergente. Jesus é o grande mestre do amor, capaz de despertar o melhor em nós, o que em muitas pessoas está adormecido devido às demandas pela sobrevivência no mundo de hoje. Ele nos ajuda a nos reconciliarmos com nós mesmos, com a nossa história, com quem somos. Essa reconciliação com Deus e com nós mesmos nos leva em direção ao outro. A fé cristã é relacional. Por isso, sua grande revelação é amar a Deus, ao próximo e a si mesmo. Acho que esse é o balanço da viagem.
Quem é você depois da viagem, Osmar? A quem recomendaria o mesmo?
Osmar – Sou alguém que lê a Bíblia com outros olhos, principalmente os relatos sobre Jesus Cristo. Voltei mais apaixonado por ele. Outro aspecto significativo foi a profunda comunhão que tivemos como grupo de peregrinos repartindo nossas experiências ao longo do caminho. Consolidamos amizades que perdurarão para o resto de nossa vida. Recomendo essa experiência a todos que têm interesse em ampliar seu conhecimento do Antigo e do Novo Testamento e que buscam aprofundar
sua experiência espiritual.